segunda-feira, 17 de agosto de 2020

No Barco da Infância






A minha infância se divide em duas etapas bem distintas: Antes e depois da asma. Antes eu vivia no mundo dos remédios, das injeções, das limitações e da falta de ar. A etapa após a cirurgia e consequente cura da asma foi um renascimento e passei a ser, após os sete anos, uma criança como as outras.

Como criança asmática, meu horizonte de brincadeiras era bastante limitado. Nada de corridas, picula, bola, baleado. As brincadeiras eram calmas e assim, num dos períodos em que fiquei muito tempo deitada, os livros entraram na minha vida para ficar. Devo o aprendizado da leitura e escrita a uma professora particular que foi contratada por meus pais que, preocupados com um possível atraso nas minhas atividades escolares, decidiram que eu teria aulas em casa.

Aquele mundo de sinais e símbolos me encantaram imediatamente, pois eu vivia numa casa repleta de materiais escritos. Livros, jornais, revistas que passavam demoradamente pelas mãos dos demais moradores da casa e para mim representavam um grande mistério. Assim, a curiosidade me fez aprender rápido e muito cedo comecei a ler tudo que me caia nas mãos. Nunca encarei aquelas aulas como uma obrigação nem qualquer leitura como fardo. Foi um legitimo caso de amor à primeira linha.

Confinada entre as quatro paredes do apartamento, fui ainda nessa época apresentada a um outro mundo que também me encantou: o mundo da moda.

Até começar a trabalhar, praticamente todas as minhas roupas eram feitas por minha mãe. Deitada na cama, tinha ao meu alcance uma variedade enorme de revistas de moda: Manequim, Figurino Moderno, A Cigarra. Além das fotos das roupas, essas revistas traziam um encarte onde os moldes das roupas eram representados por linhas de diferentes traçados e cores. Muito nova eu já ajudava minha mãe a riscar estes moldes e depois os transferia para um papel pardo que seria posteriormente recortado e colocado sobre o tecido a ser cortado. Eu adorava essas atividades, para mim uma grande brincadeira. Nas bancas de revistas eram vendidas na época bonecas de papel, acompanhadas de roupinhas que podíamos destacar e cortar. Creio que foi antes dos sete anos que comecei a desenhar minhas primeiras roupinhas, de início para as bonecas e depois, para mim mesma. Minha mãe me estimulava bastante e cheguei a ter caixas e caixas de papelão cheias de modelos desenhados por mim. Era essa a minha forma de ocupar o tempo, e na minha cabeça, todas as crianças faziam o mesmo que eu.

Como minhas atividades não dependiam de esforço físico, jamais quebrei ou torci qualquer membro, e muito poucas vezes cheguei a ralar um joelho. Era uma menina até então quietinha, educada, que muito cedo aprendeu a comer com garfo e faca e a não falar na mesa sem autorização. Com exceção do leite, a que eu tinha pavor, pode-se dizer que eu comia de tudo. Minha mãe cozinhava bem, graças a uma coleção encadernada da revista Bom Apetite, de onde tirávamos receitas diferentes do trivial. Assim, mesmo pequena, eu já sabia o significado de empanado, gratinado, molho branco, strogonoff. A dinâmica era sempre a mesma: Enquanto eu lia, minha mãe ia preparando a receita. Diferente da maioria das crianças, tudo de comer me interessava. Na escola, as colegas me cercavam na hora do recreio, curiosas para ver as coisas esquisitas que saiam da minha lancheira. Pão com geleia de ameixa, sanduiche misto com tomate e uma azeitona espetada como nos coquetéis que eu e minha mãe víamos nas revistas. Um sucesso! Nunca gostei muito de doces, com exceção de chocolate, claro. Meu prato preferido na infância era purê de batata com fígado de galinha, tomate, pepino e um ovo cozido. No dia do meu aniversário minha mãe me permitia comer dois ovos, para mim talvez o melhor de todos os presentes.

Como a diferença de idade entre minha irmã e eu é de quase quatro anos, nunca fomos de brincar muito juntas. Aos onze anos ela já era uma mocinha e eu entre sete e oito anos ainda enfrentava os desafios da minha saúde. Diferente de mim ela entrou cedo na escola e entre nós havia uma diferença de quatro anos escolares. Dela herdava brinquedos, roupas e mais tarde, todo o material escolar. Por não ter outros irmãos e por ter demorado a ir para a escola, muito cedo me acostumei a sentir prazer na minha própria companhia. Esse aprendizado me foi muito útil, pois assim é até hoje.

 

Um comentário:

  1. Oh Vânia, que texto leve, bacana pra se lê, e viajar no tempo, que delícia estou amando

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