sábado, 25 de julho de 2020

Na Parede da Memória



Penso por imagens. Algumas têm movimento, como os filmes.
Há cenas tão nítidas que não parecem ter ocorrido há mais de cinquenta anos. Outras já lembram quadros pintados com aquarela  diluída em muita água. Mas sempre há alguma imagem.

Algumas cenas da infância também trazem cheiros, como o cheiro do leite tirado do peito da vaca na fazenda. Odiava o leite, o cheiro do leite, o barulho que o leite fazia ao sair da teta da vaca e bater no balde de metal formando uma espuminha asquerosa. A fazenda toda cheirava a alguma coisa. O fogão de lenha e tudo que vinha dali tinha um cheiro gostoso, a espiral que matava os mosquitos não, a bosta dos bois e cavalos muito menos.

Outro cheiro forte da infância era o do xarope de agrião que Dona Vivi, a lavadeira, preparava em casa para mim. Posso vê-la, ancas enormes, trouxa de roupa na cabeça, subindo com dificuldade os dois lances de escada do prédio, trazendo entre as roupas o xarope, cujo cheiro a antecedia. Esse era um cheiro que me enchia de pavor. Até hoje odeio agrião.

Mas há muitos lembranças de cheiros felizes! O talco que minha mãe me passava e que eu lambia, a espuma de barbear de meu pai, o cheiro de álcool das provas, a cera Parquetina do piso, a graxa que eu passava nos meus sapatos Vulcabras aos domingos e que me lembrava que no dia seguinte era dia de aula. Tantos cheiros, tantos.

Sempre acreditei que memória era  igual para todo mundo, até que comecei a organizar encontros de ex-colegas de ginásio e primário.
Aí descobri que minha memória era diferente, pois  via as cenas como se tivessem acontecido recentemente, ao contrário da maioria das colegas.

Lições inteiras de Francês, todos os sobrenomes de todas as trinta e cinco colegas, nomes de todos os professores e suas disciplinas, trechos de lições que decorei, fatos que ninguém mais lembrava. Virei referência para consultas sobre nossos tempos de escola.

Não sei se gosto de divagar por ter boa memória, mas gosto muito de lembrar de fatos passados. Na minha tela mental as cenas vão se seguindo, às vezes até  arrisco mudar a sua ordem. Ser platéia do que vivi já me ajudou a entender hoje fatos  que na época não ficaram tão claros. Consigo ser mais compreensiva comigo, e muitas vezes, dou a sofrimentos passados uma nova interpretação.

Um comentário:

  1. Maravilha! Que memória fantástica! Gosto muito de leitura que relata fatos da vida real, principalmente de alguém que conheço. Dei muita risada com a arte da pintura da parede, me identifiquei com o xarope de agrião, pois também tomei; enfim, gostei muito. Continue escrevendo e avisando. Parabens!����

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  Feijão, arroz, galinha assada. Feijão, arroz, carne de porco assada. Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre. Mesmo sendo uma família...