domingo, 17 de outubro de 2010

Um consenso dentro do Censo


Tenho visto aqui e ali cartazes lembrando que começou o Censo 2010. Nos mesmos cartazes, aparece a figura do recenseador e é solicitado a todos que recebam bem este profissional que presta um serviço de inegável valor ao país. O pedido faz todo sentido. Afinal, nestes tempos de insegurança, existe um justificado temor da população em abrir a porta de casa para um estranho. Mas nem sempre foi assim.

                      Em 1980 eu era uma estudante do segundo ano de Administração de Empresas momentaneamente desempregada, após sair de meu primeiro emprego. Surgiu então a chance: A seleção para recenseador do IBGE e um trabalho desafiante. Após ser aprovada na seleção, começou então o treinamento. Uma das questões que mais preocupavam os candidatos era a possibilidade de deslocar-se para locais perigosos e de difícil acesso. Comigo isso não aconteceu, pois fui aprovada numa boa classificação e pude escolher onde faria meu trabalho. Claro que escolhi minha rua e região. Jamais poderia imaginar as emoções que me esperavam.


             Na época eu morava em Salvador no bairro da Barra, mais precisamente no que se chama Barra Avenida. Era uma área na época praticamente toda residencial, diferente do que hoje lá acontece. Fiz meu trabalho com relativa facilidade, adorei a experiência de conversar com tanta gente que eu não conhecia, fiz amizades, me diverti. Lembro que cheguei num sábado em uma casa onde se preparava um grande almoço de aniversário. Acabei sendo convidada, fui e virei a atração da festa. Bem, mas voltando ao trabalho em si, terminei minha parte bem rápido, toda feliz e minha coordenadora então me perguntou se eu não toparia fazer outro território, que era como chamavam as áreas destinadas a cada recenseador. Perguntei onde seria, afinal, eu havia feito meu trabalho todo a pé, nos intervalos das aulas. Ir para longe complicaria minha vida. Ela respondeu que perto, era. Só que... era uma favela.


         Para algumas pessoas que ainda hoje só conhecem o bairro da Barra superficialmente, afirmar que havia tão perto uma favela pode soar como uma invenção. Só que não só havia favelas, como algumas estão lá até hoje, como a Roça da Sabina e o Calabar. A que eu tive a oportunidade de conhecer não mais existe. Chamava-se Lasca Fogo e no seu lugar, ergueu-se o Shopping Barra. Não consegui descobrir qual o paradeiro daquela população após a desocupação da área. A favela se estendia por uma área muito extensa, sendo que do alto do morro descortinava-se uma linda vista para o mar. Quem hoje anda pelo shopping nem imagina o que já foi aquela região antes da chegada das escavadeiras.


         Pois então, topei o desafio, ou alguém duvidava disso? Comecei pela parte de baixo, e aí surgiu a primeira dificuldade. Nos dias de chuva era impossível subir o morro, pois, o barranco se transformava numa pequena cachoeira. Precisava de paciência. Era um mundo novo para mim. Em 1980, pelo menos em Salvador, não existia a associação direta entre favela e crime. Tanto que para todas as pessoas que souberam do trabalho que eu estava prestes a fazer, a família inclusive, a preocupação era em relação a pobreza, mas ninguém temeu pela minha segurança.


          O fato é que à medida que eu ia subindo, as pessoas que eu entrevistava me perguntavam se eu iria a todas as casas. Eu respondia sempre que sim, e aí, vi surgirem piadinhas em relação a uma casa que ficava lá no alto do morro, ao lado de uma venda. Como ninguém dizia o motivo das piadas, esperei chegar ao final do trabalho para desvendar o mistério. Por mais que tentasse, nunca poderia imaginar o que estava por vir.

         Ao chegar à pequena casa que para mim já era uma grande interrogação, fui recebida por uma mulher de meia idade muito simpática. Entrei, sentei-me no sofá velho e furado, e constatei que além dela ali moravam seu marido, sua irmã, algumas crianças e um carneiro. Abri meu formulário e comecei as perguntas. O que ela me relatou me deixou abismada.


         Como já disse, moravam, além dela e do seu marido, sua irmã e as crianças, filhas de ambas. Até aí, nada de mais, a não ser o fato de que todas as crianças eram irmãs por parte de pai, pois todas eram filhas do mesmo homem, o dono da casa. Precisei perguntar de novo, para ver se havia entendido bem. Sim, era isso mesmo, elas partilhavam o marido. Com calma e serenidade ela me explicou que antes de morar em Salvador, ela vivia com a família numa região paupérrima do interior da Bahia, onde a seca dura vários meses, trazendo com ela a fome e a falta de perspectivas. Numa dessas secas, o marido dela então solteiro, fazia uma viagem pela região. Seu pai, desesperado, ofereceu ao homem uma de suas filhas, no caso ela, para ser sua mulher e escapar do cruel destino que ele acreditava estar reservado para toda a sua família. Solteiro na época, o homem conversou com ela, achou-a segundo ele me disse depois, honesta, e a trouxe então para Salvador onde passaram a viver como marido e mulher. Aos poucos, ela se acostumou com a vida nova e, fora a saudade da irmã mais nova, vivia bem.

             Passado algum tempo, recebem eles uma carta onde o pai pedia que, por favor, eles fossem buscar a irmã mais nova, pois a situação estava ainda muito pior que antes. Assim foi feito, e ela, feliz da vida, trouxe para casa sua irmã, a quem ela tratava com carinho de mãe. Passado algum tempo, a moça começa a fazer amizades, começam os primeiros namoros. Aí é que vem a surpresa. Com a maior calma do mundo, a dona da casa me diz que ela não queria de jeito nenhum que a irmã fosse embora, levada por algum vagabundo. Assim, para manter a irmã em casa, ela propôs que ambas dividissem o mesmo marido, assim, ficariam todos juntos e cuidariam juntas das crianças que viessem. A irmã aceitou e só depois o marido foi comunicado. Perguntei o que ele achou e ela respondeu que no começo não achou certo, mas depois, se acostumaram todos a viver desta forma.


            Estávamos nessa parte da história quando o dono da casa vem, chegando de sua vendinha. Pela minha cara ele entendeu que eu sabia da história da família. Simpático, me ofereceu uma cachacinha que eu, educadamente, recusei. Chamou as crianças e foi me apresentando, dizendo quais eram as filhas de uma e de outra, enquanto eu ia preenchendo meus papéis. Sua esposa, orgulhosa, acompanhava a cena. A casa apesar de muito pobre, tinha uma atmosfera de paz. Antes de sair, ao me despedir, sou apresentada a outra moradora que vem chegando da rua. Ela sorri para mim um pouco envergonhada. Antes de descer o morro olho para trás, e retribuo o aceno que esta diferente família me faz da porta. Havia ali sem dúvida, um consenso.

           Ninguém fica indiferente a esta história. Alguns se revoltam, outros sentem pena, outros ainda insistem em achar que elas foram obrigadas a isso. Eu, que ouvi a história diretamente de dois dos protagonistas, prefiro respeitar.

          Isso aconteceu em 1980. Dez anos depois, já trabalhando de forma estável, novamente me inscrevi na seleção e novamente atuei. Só que dessa vez em outro bairro, e percebi claramente o medo que começava a rondar a população. Neste ano, juro que pensei em me inscrever, mas a minha absoluta falta de tempo me impediu de tentar. Lembrei de tudo isso enquanto respondia a simpática recenseadora que agora lança meus dados no seu aparelhinho hi-tec. Saudades de 80...

16 comentários:

  1. Maria Regina Toniazzo17 de outubro de 2010 às 14:04

    Oi Vânia! Que história! Sua escrita está cada vez mais encantadora. Sensível e atenta você substancia os fatos e faz dos personagens reais ou imaginários, vívidas presenças com quem podemos dialogar. Fiquei fascinada com a sabedoria e lucidez da modesta moradora da favela. Colocar os afetos acima das convenções e arranjos sociais é sempre um ato de coragem. Se utilizássemos mais a escala do coração do que a dos padrões e convenções, até poderíamos ser mais criticados, mas com certeza seríamos mais felizes. A vida é bela e curta. Viva a felicidade e seus arranjos possíveis!!!!

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  2. Oi Vania, lembro que você me contou uma vez essa história. É muito interessante. Um beijo. Danilo.

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  3. Oi, Vâni!!!
    Vim te visitar.
    Muito engraçada esta estória.
    Beijos

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  4. Querida,

    Antes eu preciso avaliar se devo ou não arrumar um marido, né não?

    Fora esse "pequeno detalhe", grande história. Aos que estranharam ou ainda estranham que algo assim ocorra, a certeza de que não fazem ideia do que é a dimensão humana, cheia de razões que nenhuma razão é capaz de compreender.

    Por fim, apresento meu protesto porque o link (do seu) para o meu blog está corrompido. Beijo,

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  5. Já li e, como sempre, adorei! Que história!
    Beijo, minha musa!

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  6. Oi Vania!!!!!
    Como sempre vc e suas historias fantasticas.... uma amiga minha fez esse trabalho e se bateu com casos incriveis tb.
    Aproveito para agradecer sua presença no meu niver...adorei ter todas as amigas juntas.
    Beijos

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  7. Vampinha,
    Adoro seu jeitinho de escrever! E dessa vez, que história...digna de filme!
    Pensando bem, se Frida Kalo pensasse tal como essa esposa tão fraternalmente solidária,nem teria se importado em dividir Diego Rivera com sua irmã Cristina, né?
    Mas cada um é cada um ...Gente é tudo igual e diferente!
    Abreijos

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  8. Olá Vânia,
    Descobri que nascemos para ser colegas. Trabalhei no censo de 1980, em minha terra natal - Montes Claros (MG). A classificação obtida também permitiu que escolhesse a área. Imagine qual escolhi? Onde morava, claro. Por meio do IBGE consegui "bisbilhotar" a vida dos meus vizinhos. Fiz num ritmo tão confortável, que nem peguei outra área como você. De uma família católica e de professores, lembro que fiquei impressionado em descobrir alguns analfabetos e ateus.
    Hoje fiquei ansioso para chegar em casa e ler sua nova crônica. E mais uma vez, gostei muito!
    Abs.

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  9. Oi filha,
    li todo o seu blog, quanta coisa bonita você sabe dizer, é por isso que Dindo diz que você herdou a inteligência dele, que bom não é?
    Muito interessantes suas histórias, fico feliz por você ter descoberto este Veio de inteligência,
    Parabéns filha,
    Te amo
    Mamãe

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  10. Vânia,
    tenho acompanhado seu blog, quanta história interessante. Muito bacana! Parabéns!

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  11. Vânia,
    Adorei essa como todas as outras. Seu texto é maravilhoso. Parabéns pela fluência, pela cadência gostosa com que as palavras surgem e nos envolvem, sempre com temas desconcertantes que nos tocam de alguma forma.
    Adoro a maneira como você apresenta as mazelas humanas fazendo-nos sempre pensar nas diferenças e ao mesmo tempo sentir que somos todos feitos do mesmo material: corpo, alma e pensamento.
    Beijo,
    Eleonora

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  12. Adoooooro seus textos!!! Bjos e muita inspiração, sempre!

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  13. Vânia,

    Adorei essa história. Percebe-se a naturalidade e falta de maldade nas pessoas. Seria tão bom se a vida ainda fosse assim, não é mesmo?
    E como escreveu a Eleonora, parabéns pela fluência e leveza das palavras.

    Beijos

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  14. Amigos,

    obrigado de coração pelos comentários e pelo carinho. As possibilidades de interação que o blog tem me proporcionado superam em muito as expectativas que tinha quando, em um domingo de março, criei este espaço de partilha. Hoje, ao constatar que já são mais de mil os acessos, só tenho a agradecer.

    Beijos,
    A gente se encontra na próxima história!

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  15. Vânia,

    Fim de arte, sexta-feira, sobrou um tempinho e resolvi entrar no seu blog.

    Quis postar um comentário mas não consegui. O texto que li foi "Um censo dentro do consenso".
    Adorei a história e a forma deliciosa como você a conta. Interessante a forma que aquelas pessoas simples encontraram pra
    viver e solucionar seus problemas. É com certeza admirável e merece nosso respeito. Parabéns pelo texto e pela sua disponibilidade
    para viver experiências diferentes.

    Beijos,

    Cecília

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Almoços de Domingo

  Feijão, arroz, galinha assada. Feijão, arroz, carne de porco assada. Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre. Mesmo sendo uma família...