quinta-feira, 25 de março de 2010

A noiva e o sindicalista

  Bahia, junho de 1995


Friozinho de junho, eu e uma colega demos início a mais um Curso de Formação de Alfabetizadores de Adultos.

Como é de praxe nessas ocasiões, as pessoas se apresentam de forma rápida: nome, origem e expectativas em relação ao curso. Dois dos participantes se destacaram. O primeiro, após dizer o nome, declarou-se membro do Sindicato local e discorreu longamente sobre a luta de classes, oprimidos e opressores e a má distribuição de renda no país. Tentamos com delicadeza trazê-lo de volta aos itens da apresentação. Sem sucesso: ele aproveitou a deixa para falar da exploração sofrida pelas classes populares. Na sequência, outros participantes se apresentaram. A última foi uma jovem de traços delicados, que falava baixinho e sempre olhando para o chão. Disse o nome, o que estudava e concluiu sua fala com um inesperado “Eu sou noiva”. Aliás, o fato era facilmente comprovado pela larga aliança que ostentava na mão direita. Os demais participantes se entreolharam talvez tentando entender quais os impactos desse fato na proposta pedagógica do curso.

Para o primeiro almoço da semana buscamos um restaurante próximo ao local do curso. Juntamos diversas mesas, mas como formávamos um grupo de mais de 20 pessoas, não foi possível que todos almoçassem juntos. Assim, alguns tiveram que ocupar outras mesas, entre os quais, a noiva e o sindicalista.



Durante o almoço, observamos que apesar de serem bem diferentes, os dois pareciam estar se divertindo muito. A fisionomia séria do sindicalista de vez em quando se abria em um largo sorriso, acompanhado sempre de risadinhas tímidas da noiva. No trajeto de volta para o curso os dois nos seguiram a uma pequena distância, ainda entretidos em animada conversa. No dia seguinte, almoçamos no mesmo lugar. Para nossa surpresa, antes mesmo de juntarmos as mesas, duas pessoas já trataram de ocupar uma mesa mais reservada: a noiva e o sindicalista. Nesse dia no caixa, provavelmente fazendo a sua parte na busca de uma melhor distribuição de renda, o sindicalista pagou a conta da noiva.


Durante a semana, cada vez mais próximos, a noiva e o sindicalista aproveitavam todos os momentos livres para conversar. Ágil, ele sempre era o primeiro a chegar, deixando displicentemente seus livros pousados na cadeira ao lado. Com a chegada da noiva os livros eram então retirados para que o assento fosse por ela ocupado. Na quinta-feira, penúltimo dia do curso, a turma dividida em grupos organizava oficinas de alfabetização. No turno da tarde, ao darmos início às apresentações, demos por falta de duas pessoas: a noiva e o sindicalista. Minha colega e eu decidimos dar prosseguimento às atividades, deixando para conversar com a enlevada dupla quando do retorno de ambos, o que só veio a acontecer bem mais tarde, ele sorridente, com os olhos brilhantes e ela, como de costume, com o olhar fixo no chão. É importante esclarecer que minha companheira de curso é uma das pessoas mais racionais e equilibradas que conheço. Eu sou mais emoção, impulso. Atuar em dupla com ela era ótimo, pois nos complementávamos.


Sexta-feira, último dia do curso. Minha colega e eu organizávamos as atividades de encerramento do curso, já com saudades da turma e das experiências ali vividas. Hora de começar, percebemos a falta da noiva. Agitado, o sindicalista não tirava os olhos da porta. Nesse instante, ela chegou. Ofegante, pálida, entrou na sala com os olhos arregalados, sem olhar para ninguém. Então, como que em câmara lenta, a noiva deu alguns passos e, lançando um olhar em torno de sala, como se buscasse o apoio de cada um dos colegas, falou com um fio de voz:

- Meu noivo chegou...E, para nossa surpresa, caiu desmaiada ali mesmo, no centro da sala. Eu me apavorei. Gritei para a minha parceira de curso:

- Meu Deus, ela desmaiou!

Ela, calmíssima, simplesmente confirmou diante do corpo estendido no chão:

- De fato, ela está desmaiada.

Foi um Deus nos acuda, todos correram ao mesmo tempo. Uns ligaram para o hospital mais próximo, outros se revezaram para carregar a noiva, outros tentavam em vão reanimá-la. No meio da confusão, só uma pessoa permaneceu imóvel, o olhar perdido no vazio: o sindicalista. Transferida para o hospital, a noiva foi atendida, medicada e diagnosticada como tendo sofrido uma queda de pressão. Retornou do hospital ainda mais frágil, amparada pelo noivo que foi avisado do ocorrido e, solícito, a trouxe de volta para a sala. Fizemos o encerramento no meio da tarde, no mesmo restaurante que nos acolheu durante toda a semana. Em vão tentamos trazer o sindicalista para a mesa coletiva. Novamente sisudo, ele insistiu em ocupar sozinho uma mesa. A mesma mesa na qual ele e a noiva iniciaram esta curiosa história de amor.

3 comentários:

Almoços de Domingo

  Feijão, arroz, galinha assada. Feijão, arroz, carne de porco assada. Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre. Mesmo sendo uma família...