terça-feira, 7 de setembro de 2010

Sabor de paixão

          Brasília é uma cidade de excelentes restaurantes. Não é a toa que os que para cá se mudam em poucos meses percebem as consequências desse fato nos ponteiros da balança. Comigo não foi diferente e agora corro atrás do prejuízo.  Preciso esclarecer um detalhe: o que me atrai nos restaurantes atualmente além da boa comida, são os detalhes. Adoro restaurantes aconchegantes e cada vez me afasto mais do padrão Churrascaria com suas mil opções de comidas impessoais, seu barulho e ar condicionado siberiano.

     Entre os restaurantes que mais gosto, está um restaurante português.  Na  primeira vez em que fui lá com meus amigos fiquei fascinada. Apesar de não ser exatamente uma fã de bacalhau, o “Bacalhau com Natas” que provei era um verdadeiro contato com o Nirvana. Sal na medida certa, cebolas em fatias finíssimas, batatas idem, o creme de natas delicioso. Mínimo, o restaurante é voltado para uma quadra residencial tranqüila e silenciosa.

      Entre os atrativos que esse restaurante oferece, está o garçom. Não, não se trata de um garçom barulhento,   espaçoso. É justamente o contrário. Alto e magro, o garçom, único do estabelecimento, lembra um poeta romântico do final do século XIX, destes que passam fome, sofrem e morrem por amor. Circunspecto, ele anuncia num tom solene o andamento do preparo dos pratos na cozinha. Sem dúvida, um personagem. Como sempre vou lá aos domingos, nunca tive pressa alguma. Enquanto os amigos e eu aguardamos os pratos, vamos jogando conversa fora, ouvindo o ruído das folhas secas se arrastando pelo chão da quadra. Momentos em que, como na canção de Dominguinhos, estamos nos braços da paz.

         Num desses domingos, aconteceu um fato curioso. Ao chegarmos, percebemos que havia um grupo grande, comemorando um aniversário. O garçom nos avisou que o serviço demoraria mais do que o costume. Não nos importamos, afinal, o que são alguns minutos a mais diante do maravilhoso bacalhau e do arroz branco soltinho, salpicado de alho frito e crocante servido diretamente da panela para o nosso prato? Ocupamos nossa mesa decididos a esperar.

     Após a refeição, como sempre fantástica, decidi que desta vez provaria uma sobremesa. Meus amigos concordaram, entusiasmados. Mas eis que então, o inesperado aconteceu. Ao informar o garçom do nosso desejo, ele mudou de expressão. De pé ao lado da nossa mesa, seu rosto adquiriu feições ainda mais trágicas. Seus olhos buscaram o chão e ele colocou uma mão sobre a outra, como fazem os apresentadores dos jornais de TV quando focalizados de corpo inteiro:

- Infelizmente, dessa vez ficarei em débito. (pausa) Não será possível atender ao seu pedido.

- Mas não há nenhum doce? - Perguntei surpresa.

- Não! (pausa) Infelizmente, a nossa confeiteira... (pausa, sem me encarar nos olhos)

Um de meus amigos, educadíssimo, mostrou-se solidário:

- Ela... ela faleceu?

O garçom levantou a cabeça com um vigor inesperado. Fitando um ponto distante qualquer, respondeu como se recitasse um texto de Shakespeare:

- Não! Fugiu!

Ficamos atônitos. Observando nosso espanto ele completou:

- Fugiu com o fornecedor de chouriça...- E retirou-se rapidamente para o interior do restaurante.
     Ficamos todos sem ação. Fugiu? Como assim fugiu? Quem ainda foge nos dias de hoje? Imediatamente me vem à mente uma crônica do poeta Affonso Romano de Sant ‘Anna, Fugir por amor, onde ele contrapõe ao ato banal de se juntar, o ato tempestuosamente romântico de fugir, citando fugas da ficção como Romeu e Julieta, e fugas da vida real consumadas ou não, como a do poeta Neruda e sua amada Laura Arué.
         Mas voltemos à cozinha de nosso pequeno restaurante português. Num dia como outro qualquer, a confeiteira, depois de misturar na tigela a farinha de trigo e o açúcar, enxuga com as costas da mão a testa cansada. Na tigela acrescenta as gemas e a baunilha. As claras em suspiro virão em seguida . Mas eis que um som vindo de fora a desperta. Ofegante, o fornecedor de chouriça se aproxima do balcão indagando pelo proprietário. A confeiteira, do outro lado do balcão, limpa as mãos brancas no avental. Quando seus olhares se encontram, ela sente seu coração disparar.
            O que teria acontecido no intervalo entre este olhar e a decisão de jogar as panelas para o alto, abandonando caixas e caixas de bacalhau, sacos e sacos de açúcar, garrafas e mais garrafas de azeite de oliva? Jamais saberemos. Mas como uma heroína romântica, a confeiteira deixou-se arrebatar pela paixão, deixando órfãos dos seus doces os clientes do restaurante. Conhecedora dos segredos que transformam uma lista de ingredientes em receitas deliciosas, arriscou-se a viver uma história de amor. Com açúcar e, talvez, também com afeto.
         Demoramos uns dois meses para voltar ao restaurante. Devo confessar que durante esse período, me surpreendia pensando na confeiteira e no seu amado, o fornecedor de chouriça. Como estariam? Acomodados na mesa de sempre, pedido feito, não me contenho. Quando o garçom se aproxima com as bebidas, pergunto, timidamente:

- E a... Confeiteira... ela... ?

Para minha surpresa, o garçom esboça um sorriso e responde radiante:
- Ela está de volta!

     Após o almoço magistral, degusto um Pastel de Belém. Não me atrevo a perguntar mais nada. Não é preciso. As folhas secas continuam caindo das árvores que rodeiam a quadra e nada parece ter mudado. Mas a sobremesa, essa sim, tem um sabor diferente. Um sabor de aventura e paixão.

28 comentários:

  1. carlosalberto.nevesdarocha@gmail.com7 de setembro de 2010 às 08:30

    a chouriça era algo diferente da rotina de um restaurante estiloso português - ela tinha que experimentar para chegar à conclusão que, pra rotina, o estilo é um sonho mais sólido!

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  2. Adorei Va, seguir atras da paixão mesmo que por instantes, largar tudo.... e ser feliz

    Bjs

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  3. Vânia, me transportei por instantes... e quase pude sentir o gosto do Bacalhau de Natas! Como trasnformar um almoço domingueiro numa poesia! Só você mesma..

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  4. Vânia querida,
    Como sempre, ler suas crônicas me faz desfrutar delícias!! Dessa vez, quase literalmente. Mas fiquei com uma pulga atrás da orelha: esse garçom (que já visualizei como uma versão portuguesa de Adrien Brody) não seria apaixonado pela doceira? Desconfio que a tristeza e alegria dele nas duas situações não eram apenas vontade de bem servir...
    Beijo
    Lígia

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  5. Lili,

    você foi em cima!!!
    Ele é a cara do Adrien Brody. Engraçado, eu olhava pra ele e pensava que parecia com alguém e a ficha nada de cair. Agora, se era uma paixão recolhida, quem sabe?
    Mas isso...é outra história!

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  6. Muito legal, Vânia. Parabéns!
    Amei, amei... seu blog só faz crescer.
    Besos de cereza,

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  7. Que história linda!!! Linda porque um romance é sempre lindo, mais ainda quando é arrebatador como esse!... tão antigo que nem parece mais existir. Mas é também uma linda história porque foi deliciosamente contada por você, Vânia.
    Beijos,
    Rita Leite

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  8. Rita querida,

    saudades!
    Em outubro a gente se vê em Salvador.
    Beijos!

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  9. Oi Vânia,não acertei colocar o comentário no seu Blog...pede um tal de url?????
    mas adorei o que vc escreveu!
    Um beijo,

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  10. Nem preciso comentar nada, já que tive o prazer de ouvir essa historieta de própria voz desta nossa cronista incomparável. Por coincidência, sentados à mesa de sabores infelizmente muito distantes dos desse estabelecimento português secreto. (Heraldo Palmeira)

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  11. Vania

    Que romantico!!!!!
    Você realmente escreve como romancista.
    Parabens. Beijo.(Auxiliadora Alvim)

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  12. Vampinha,

    Que delícia essa história...deu vontade de voltar Brasília só pra saborear iguarias portuguesas e conhecer os personagens apaixonantes e apaixonados!(senti algo mais entre o garçom e a doceira...)
    Sinto também que você escreve e descreve tão bem, porque o faz com a alma linda e romântica que Deus lhe deu!
    Não pare, viu? e quero ver/ler o livro
    Abreijos, Márcia (Xaxinha)

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  13. Querida,

    obrigado pelo estímulo constante.
    Eu me fascino com as pessoas comuns, com o cotidiano. Cada pessoa é um personagem neste longa metragem que é a nossa vida...

    Beijos!

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  14. Adorei!!!
    O clima da narrativa me fez visualizar como num filme.
    Bj
    Anginho

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  15. Vânia, adorei! Mas, pelo amor de Deus, qual é o nome do restaurante português? Tô com água na boca. Beijo grande. Valeska

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  16. Cara Vania!

    Muito bom! Lembrei do bacalhau com nata que comi em um "boteco" em Portugal, o melhor de minha vida!
    Vania, já que você é de Brasília, que tal participar do curso de Criação Literária da Sonia Belloto em Brasília? Veja as inscrições em
    http://www.fabricadetextos.com.br/br/cursobrasilia.htm; acredito que vale MUITO à pena. Vou participar também, de repente é uma boa oportunidade para nos conhecermos!
    []s

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  17. Amiga,

    Só você para me transportar para este mundo mágico.
    Lembrei de um certo garçon de um restaurante oriental...
    Beijão
    Bel

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  18. Vânia,

    Amei o texto. Está uma pintura.
    Parabéns, seu talento de cronista é inegável.
    Li o texto como se comesse pasteizinhos de Belém.

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  19. Vaninha,
    Seu blog é um deleite!
    E dessa vez me deixou com água na boca.
    Só faltou fazer o mershandising da casa. Que restaurante é esse?

    Beijinho e adorei ver o banner do Animando-C no seu blog. Espero que esse alerta possa ajudar alguns de seus leitores a preservar uma vida que eles não sabem que pode estar silenciosamente ceifada.

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  20. Certa vez, disse-lhe que eu a definia como uma artesã das palavras. Alguém que com as mãos ia juntando as letras, dando formas as palavras e criando poesias. Hoje, acrescentaria ao adjetivo artesã, o termo; bricoleur. Trabalhar com a bricolagem seria produzir um objeto novo a partir de fragmentos de outros objetos, no qual se podem perceber as partes ou pedaços dos objetos anteriores. A idéia de que “isso sempre pode servir” percorre a prática da bricolagem. Agregamos a esta prática o exercício de desenvolver “maneiras de lidar com”. Caracteriza-se, assim, o bricoleur como aquele capaz de adaptar e de utilizar no seu trabalho quaisquer materiais encontrados. Ele sempre consegue fazer com que determinado material sirva na construção de outra categoria de objeto. Enfim, creio que você retira do cotidiano esses fragmentos e o reconstrói de modo mais poético. Dia desses, lendo Clarice vi a seguinte frase: "o que me mata é o cotidiano. Eu queria só exceções". Aqui você consegue transformar nosso cotidano em doces exceções, restituindo o encanto, devolvendo-lhe a vitalidade. Assim, hoje a penso não somente como artesã, mais como um bricoleur do cotidiano que artesanalmente tece as palavras na trama do texto, transformando a aridez do cotidiano em beleza poética. Obrigado, portanto, por transformar meus dias em boas exceções!!!
    Beijos
    Róder

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  21. Amigos queridos,

    a cada comentário, uma luz se acende. A cada palavra de estímulo, cresce a certeza de que encontrei meu caminho.

    A todos, muito obrigado pelo carinho e presença amorosa na minha vida.

    Abraços apertados!

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  22. Vânia,
    Parabéns pela crônica. Tão bom que ao final da leitura nos sentimos presenteados com sua arte. Abs, Wladimir

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  23. Vânia, adorei a crônica! Como é gratificante ver uma flor desabrochar e exalar tamanho perfume. Como você faz falta em nosso grupo. beijo no coração! (Fernanda)

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  24. Oi Vania

    Adorei esta sua historia da doceira apaixonada que joga tudo para o alto e vai viver uma paixao desenfreada. Sem contar a participacao do garcom desolado por perder momentaneamente a sua amada.
    Entendo demais essa sua colocacao dos lugares maravilhosos de Brasilia. Morei 16 anos ai e sei e sinto exatamente o que vc descreve sobre restaurantes que nao estao na midia mas sao fantasticos.Bjs

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  25. Vânia,

    Ler as histórias publicadas no seu blog, tenho a sensação de estar viajando........que coisas gostosas !!! Além dos pastéis de Belém que são deliciososssssssssssssssss.

    Beijos

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  26. Vânia, querida... que grata surpresa ler as crônicas da minha priminha linda!!! Delicioso seu blog, não consigo parar de ler, totalmente viciante!!!! Alguém já definiu a nossa família como sendo "de artistas, bandido tem que vir de fora..." rsrsrs... bjs! e parabéns!!!!

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  27. Minha querida ex aluna e amiga, como fico feliz em ler mais um texto seu. É evidente a paixão que você tem em tudo o que faz em isso me trás um misto de alegria em saudade. Espero ler muito mais dentro em breve em see convidado para um desses almoço para além de matar a fome, matar o desejo de ter a sua companhia novamente. Te amo. Um xero, do Breno

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  28. Minha querida ex aluna e amiga, como fico feliz em ler mais um texto seu. É evidente a paixão que você tem em tudo o que faz em isso me trás um misto de alegria em saudade. Espero ler muito mais dentro em breve em see convidado para um desses almoço para além de matar a fome, matar o desejo de ter a sua companhia novamente. Te amo. Um xero, do Breno

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Almoços de Domingo

  Feijão, arroz, galinha assada. Feijão, arroz, carne de porco assada. Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre. Mesmo sendo uma família...