Feijão, arroz, galinha assada.
Feijão, arroz, carne de porco assada.
Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre.
Mesmo sendo uma família de apenas
quatro pessoas, tínhamos nossos costumes e rituais. De segunda a sexta a nossa alimentação
era muito simples, pois meu pai trabalhava o dia todo, vindo em casa rápido
para o almoço que fazíamos todos juntos. Já o sábado este era sem dúvida o
melhor dos dias.
Aos sábados, minha mãe geralmente
fazia uma comida especial. Ou um cozido, ou uma moqueca, ou ainda alguma coisa
de forno. O almoço saia mais tarde e podíamos ficar depois na sala vendo
televisão. Era aos sábados também que minha mãe preparava bolos ou sobremesas
para o domingo. Eu e minha irmã dividíamos as sobras da massa que ficavam na
batedeira, enquanto aguardávamos o bolo ficar pronto. Lembro bem do cheiro de
bolo assando que impregnava não só a cozinha como a casa toda.
Ocasionalmente meus pais iam ao cinema
nos sábados à noite nos deixando em casa sozinhas. Nós não aprontávamos grandes
coisas, no máximo mexíamos na bolsa de maquiagem de minha mãe ou desfilávamos
pela casa usando seus sapatos de salto. As idas ao cinema de meus pais eram, no
mínimo, curiosas. Havia na época, não sei bem a razão, cinemas que passavam
filmes de terror japoneses, que meu pai muito apreciava, diferente de minha mãe
que morria de medo. Ao chegar em casa, ainda com medo, minha mãe nos acordava e
nos contava o enredo dos apavorantes filmes. Lembro de “A Máscara do Terror”,
“Cabelos Negros” e de um em que um homem mata um outro que passa a persegui-lo
sorrindo no fundo das xicaras de chá. Após a narração de tão bizarras
películas, minha mãe ia dormir mais aliviada, deixando as coitadinhas das
filhas acordadas, apavoradas. Hoje essas lembranças já não são tão nítidas para
ela, mas enquanto lembrou, sempre ria muito do nosso medo.
O domingo chegava e com ele a
missa de manhã, logo cedo. Durante muito tempo fui dispensada dessa programação,
pois eu ficava impaciente e reclamava, atrapalhando a concentração de minha
mãe. Após a missa, havia duas opções: Ou almoçar em casa ou visitar e almoçar
na casa de Tia Carmem, programa que eu adorava. Para esse passeio, costumávamos
pegar uma lotação, que era um ônibus pequeno e bicudo.
Além da minha tia Carmem e meu
tio Godofredo, também morava nessa casa minha prima Maria Carmem, filha de
outro irmão de minha mãe. Maria Carmem tinha mais ou menos a idade de minha
irmã e desenhava divinamente. Certa vez desenhou para mim um cartaz com a cena
do Grito do Ipiranga para um trabalho escolar que deixou minhas professoras e
colegas maravilhados. Hoje ela pinta e faz lindos trabalhos manuais. Eu adorava
esses domingos na casa de minha tia. Meu tio era escritor e poeta, usava bengala
e colete e tinha uma aparência exótica, que lembrava Chaplin. Assim como na
minha casa, na casa de minha tia crianças não falavam à mesa e o espaço entre
crianças e adultos era bem delimitado. Após o almoço, íamos para o quarto de
minha prima para deixar os adultos conversarem.
Quando meu pai comprou seu
primeiro carro, um fusca vermelho placa 3049, nossos domingos mudaram muito.
Agora era possível fazer longos passeios na orla de Salvador e conhecer praias
mais distantes. De vez em quando meu pai tentava levar sua mãe nesses passeios,
o que não era tarefa fácil.
Minha avó, que meu pai chamava de
Dona Zinha, era uma senhora calma, tranquila e que não via nesses passeios
grandes atrativos. Sempre que chegávamos lá e meu pai buscava incentivá-la a
sair conosco, ela vinha com uma série de desculpas. Ou eram os pratos esperando
na pia, ou a casa para arrumar, ou o cabelo que não estava bom. Meu pai não se
conformava e um a um, ia derrubando os argumentos. O argumento final dela,
lembro bem, era “Mas meu pé está coçando”, razão insólita que logo entrou para
o anedotário familiar. Sempre que alguma de nós queria criar dificuldades para
fazer alguma tarefa, meu pai dizia logo: “Só não me venha dizer que seu pé está
coçando”, invocando minha avó e nos fazendo cair na risada. Uma vez vencidas as
resistências de sua mãe, lá íamos nós passear na orla, em silêncio, pois para
meus pais andar de carro era um momento solene e só meu pai podia falar. Nesses
passeios com minha avó os banhos de mar não faziam parte da programação, sendo
permitida a parada para a água de côco e de vez em quando um acarajé ou abará.
A parada para a água de côco era outra polêmica, pois aqui em Salvador temos o
costume de, após a água de côco, pedir que o vendedor abra o côco com um facão
para que nós possamos comer a parte interna da fruta. Como nesses passeios
estávamos sempre bem arrumadas, meu pai não se conformava: “Toda bonitinha para
ficar aí, cavando o côco”. Fora os eventuais passeios de domingo eu não visitava
muito a minha avó, que tinha dificuldade em gravar meu nome, o que me deixava
muito triste. Mas lembro bem de seu apartamento, da vista que eu via da janela
da sala, que se abria para o prédio do Corpo de Bombeiros, próximo ao
Pelourinho. Não tenho lembrança de minha avó almoçando conosco.
Minha avó materna morava num
bairro popular de Salvador e de vez em quando eu ia lá com minha mãe,
geralmente levando frutas ou mesmo comida. Humilde, vinda do interior, ela
também não era muito dada a carinhos e assim como minha avó paterna, nunca teve
comigo grandes aproximações.
Não tenho registro de meus aniversários
na infância, sequer lembro se tínhamos esse costume. Mas lembro de aniversários
de minha irmã prejudicados pelas chuvas de maio, mês de muita água caindo do
céu. Mesmo tendo passado tanto tempo, o dia 21 de maio continua sendo em
Salvador um dia de chuva.
Gostava e ainda gosto muito de
Natal. As lojas e ruas se enfeitavam, era época das férias escolares e eu
começava a pensar nos presentes. Fui desde cedo orientada a pedir pouco,
consequentemente sempre recebia o que pedia: livros, bonecas de recortar, lápis
de cor e cera, cadernos de desenho. Como herdava as bonecas de minha irmã,
nunca tive por elas grandes desejos. Mas o que marcava nossos Natais era ele, o
peru. Nem Sadia, nem Seara, nada de peru pronto para o forno. Na semana de
Natal meu pai trazia para casa um peru vivo.
Era o costume da época. O animal condenado
passava na minha casa alguns dias preso na área de serviço sendo engordado com
uma mistura de farinha de mandioca e água. Era uma agitação e tanto. Na véspera
do Natal, o peru era então embebedado com cachaça para que não resistisse ao
golpe de facão que seria desferido por minha mãe. Essa cena eu nunca quis ver, morria
de pena, pois a convivência criava sempre um laço de amizade entre o peru e eu.
Depois de morto o animal era imerso numa panela de água fervente para facilitar
a retirada das penas. Na etapa de assar o peru no forno cercado de batatas e
azeitonas, eu já nem lembrava da nossa breve amizade. Ajudava minha mãe a preparar
o molho e a farofa de miúdos e ovos cozidos, itens indispensáveis na nossa ceia
de Natal, junto com o queijo do Reino e o panetone. Quando já adulta assumi a
responsabilidade pela ceia natalina, mantive a tradição da farofa e do molho,
além do peru, cuja chegada não causava mais alarde, pois agora já vinha temperado
e pronto para o forno.