segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Almoços de Domingo

 


Feijão, arroz, galinha assada.

Feijão, arroz, carne de porco assada. Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre.

Mesmo sendo uma família de apenas quatro pessoas, tínhamos nossos costumes e rituais. De segunda a sexta a nossa alimentação era muito simples, pois meu pai trabalhava o dia todo, vindo em casa rápido para o almoço que fazíamos todos juntos. Já o sábado este era sem dúvida o melhor dos dias.

Aos sábados, minha mãe geralmente fazia uma comida especial. Ou um cozido, ou uma moqueca, ou ainda alguma coisa de forno. O almoço saia mais tarde e podíamos ficar depois na sala vendo televisão. Era aos sábados também que minha mãe preparava bolos ou sobremesas para o domingo. Eu e minha irmã dividíamos as sobras da massa que ficavam na batedeira, enquanto aguardávamos o bolo ficar pronto. Lembro bem do cheiro de bolo assando que impregnava não só a cozinha como a casa toda.

Ocasionalmente meus pais iam ao cinema nos sábados à noite nos deixando em casa sozinhas. Nós não aprontávamos grandes coisas, no máximo mexíamos na bolsa de maquiagem de minha mãe ou desfilávamos pela casa usando seus sapatos de salto. As idas ao cinema de meus pais eram, no mínimo, curiosas. Havia na época, não sei bem a razão, cinemas que passavam filmes de terror japoneses, que meu pai muito apreciava, diferente de minha mãe que morria de medo. Ao chegar em casa, ainda com medo, minha mãe nos acordava e nos contava o enredo dos apavorantes filmes. Lembro de “A Máscara do Terror”, “Cabelos Negros” e de um em que um homem mata um outro que passa a persegui-lo sorrindo no fundo das xicaras de chá. Após a narração de tão bizarras películas, minha mãe ia dormir mais aliviada, deixando as coitadinhas das filhas acordadas, apavoradas. Hoje essas lembranças já não são tão nítidas para ela, mas enquanto lembrou, sempre ria muito do nosso medo.

O domingo chegava e com ele a missa de manhã, logo cedo. Durante muito tempo fui dispensada dessa programação, pois eu ficava impaciente e reclamava, atrapalhando a concentração de minha mãe. Após a missa, havia duas opções: Ou almoçar em casa ou visitar e almoçar na casa de Tia Carmem, programa que eu adorava. Para esse passeio, costumávamos pegar uma lotação, que era um ônibus pequeno e bicudo.

Além da minha tia Carmem e meu tio Godofredo, também morava nessa casa minha prima Maria Carmem, filha de outro irmão de minha mãe. Maria Carmem tinha mais ou menos a idade de minha irmã e desenhava divinamente. Certa vez desenhou para mim um cartaz com a cena do Grito do Ipiranga para um trabalho escolar que deixou minhas professoras e colegas maravilhados. Hoje ela pinta e faz lindos trabalhos manuais. Eu adorava esses domingos na casa de minha tia. Meu tio era escritor e poeta, usava bengala e colete e tinha uma aparência exótica, que lembrava Chaplin. Assim como na minha casa, na casa de minha tia crianças não falavam à mesa e o espaço entre crianças e adultos era bem delimitado. Após o almoço, íamos para o quarto de minha prima para deixar os adultos conversarem.

Quando meu pai comprou seu primeiro carro, um fusca vermelho placa 3049, nossos domingos mudaram muito. Agora era possível fazer longos passeios na orla de Salvador e conhecer praias mais distantes. De vez em quando meu pai tentava levar sua mãe nesses passeios, o que não era tarefa fácil.

Minha avó, que meu pai chamava de Dona Zinha, era uma senhora calma, tranquila e que não via nesses passeios grandes atrativos. Sempre que chegávamos lá e meu pai buscava incentivá-la a sair conosco, ela vinha com uma série de desculpas. Ou eram os pratos esperando na pia, ou a casa para arrumar, ou o cabelo que não estava bom. Meu pai não se conformava e um a um, ia derrubando os argumentos. O argumento final dela, lembro bem, era “Mas meu pé está coçando”, razão insólita que logo entrou para o anedotário familiar. Sempre que alguma de nós queria criar dificuldades para fazer alguma tarefa, meu pai dizia logo: “Só não me venha dizer que seu pé está coçando”, invocando minha avó e nos fazendo cair na risada. Uma vez vencidas as resistências de sua mãe, lá íamos nós passear na orla, em silêncio, pois para meus pais andar de carro era um momento solene e só meu pai podia falar. Nesses passeios com minha avó os banhos de mar não faziam parte da programação, sendo permitida a parada para a água de côco e de vez em quando um acarajé ou abará. A parada para a água de côco era outra polêmica, pois aqui em Salvador temos o costume de, após a água de côco, pedir que o vendedor abra o côco com um facão para que nós possamos comer a parte interna da fruta. Como nesses passeios estávamos sempre bem arrumadas, meu pai não se conformava: “Toda bonitinha para ficar aí, cavando o côco”. Fora os eventuais passeios de domingo eu não visitava muito a minha avó, que tinha dificuldade em gravar meu nome, o que me deixava muito triste. Mas lembro bem de seu apartamento, da vista que eu via da janela da sala, que se abria para o prédio do Corpo de Bombeiros, próximo ao Pelourinho. Não tenho lembrança de minha avó almoçando conosco.

Minha avó materna morava num bairro popular de Salvador e de vez em quando eu ia lá com minha mãe, geralmente levando frutas ou mesmo comida. Humilde, vinda do interior, ela também não era muito dada a carinhos e assim como minha avó paterna, nunca teve comigo grandes aproximações.

Não tenho registro de meus aniversários na infância, sequer lembro se tínhamos esse costume. Mas lembro de aniversários de minha irmã prejudicados pelas chuvas de maio, mês de muita água caindo do céu. Mesmo tendo passado tanto tempo, o dia 21 de maio continua sendo em Salvador um dia de chuva.

Gostava e ainda gosto muito de Natal. As lojas e ruas se enfeitavam, era época das férias escolares e eu começava a pensar nos presentes. Fui desde cedo orientada a pedir pouco, consequentemente sempre recebia o que pedia: livros, bonecas de recortar, lápis de cor e cera, cadernos de desenho. Como herdava as bonecas de minha irmã, nunca tive por elas grandes desejos. Mas o que marcava nossos Natais era ele, o peru. Nem Sadia, nem Seara, nada de peru pronto para o forno. Na semana de Natal meu pai trazia para casa um peru vivo. 

Era o costume da época. O animal condenado passava na minha casa alguns dias preso na área de serviço sendo engordado com uma mistura de farinha de mandioca e água. Era uma agitação e tanto. Na véspera do Natal, o peru era então embebedado com cachaça para que não resistisse ao golpe de facão que seria desferido por minha mãe. Essa cena eu nunca quis ver, morria de pena, pois a convivência criava sempre um laço de amizade entre o peru e eu. Depois de morto o animal era imerso numa panela de água fervente para facilitar a retirada das penas. Na etapa de assar o peru no forno cercado de batatas e azeitonas, eu já nem lembrava da nossa breve amizade. Ajudava minha mãe a preparar o molho e a farofa de miúdos e ovos cozidos, itens indispensáveis na nossa ceia de Natal, junto com o queijo do Reino e o panetone. Quando já adulta assumi a responsabilidade pela ceia natalina, mantive a tradição da farofa e do molho, além do peru, cuja chegada não causava mais alarde, pois agora já vinha temperado e pronto para o forno.

 

No Barco da Infância






A minha infância se divide em duas etapas bem distintas: Antes e depois da asma. Antes eu vivia no mundo dos remédios, das injeções, das limitações e da falta de ar. A etapa após a cirurgia e consequente cura da asma foi um renascimento e passei a ser, após os sete anos, uma criança como as outras.

Como criança asmática, meu horizonte de brincadeiras era bastante limitado. Nada de corridas, picula, bola, baleado. As brincadeiras eram calmas e assim, num dos períodos em que fiquei muito tempo deitada, os livros entraram na minha vida para ficar. Devo o aprendizado da leitura e escrita a uma professora particular que foi contratada por meus pais que, preocupados com um possível atraso nas minhas atividades escolares, decidiram que eu teria aulas em casa.

Aquele mundo de sinais e símbolos me encantaram imediatamente, pois eu vivia numa casa repleta de materiais escritos. Livros, jornais, revistas que passavam demoradamente pelas mãos dos demais moradores da casa e para mim representavam um grande mistério. Assim, a curiosidade me fez aprender rápido e muito cedo comecei a ler tudo que me caia nas mãos. Nunca encarei aquelas aulas como uma obrigação nem qualquer leitura como fardo. Foi um legitimo caso de amor à primeira linha.

Confinada entre as quatro paredes do apartamento, fui ainda nessa época apresentada a um outro mundo que também me encantou: o mundo da moda.

Até começar a trabalhar, praticamente todas as minhas roupas eram feitas por minha mãe. Deitada na cama, tinha ao meu alcance uma variedade enorme de revistas de moda: Manequim, Figurino Moderno, A Cigarra. Além das fotos das roupas, essas revistas traziam um encarte onde os moldes das roupas eram representados por linhas de diferentes traçados e cores. Muito nova eu já ajudava minha mãe a riscar estes moldes e depois os transferia para um papel pardo que seria posteriormente recortado e colocado sobre o tecido a ser cortado. Eu adorava essas atividades, para mim uma grande brincadeira. Nas bancas de revistas eram vendidas na época bonecas de papel, acompanhadas de roupinhas que podíamos destacar e cortar. Creio que foi antes dos sete anos que comecei a desenhar minhas primeiras roupinhas, de início para as bonecas e depois, para mim mesma. Minha mãe me estimulava bastante e cheguei a ter caixas e caixas de papelão cheias de modelos desenhados por mim. Era essa a minha forma de ocupar o tempo, e na minha cabeça, todas as crianças faziam o mesmo que eu.

Como minhas atividades não dependiam de esforço físico, jamais quebrei ou torci qualquer membro, e muito poucas vezes cheguei a ralar um joelho. Era uma menina até então quietinha, educada, que muito cedo aprendeu a comer com garfo e faca e a não falar na mesa sem autorização. Com exceção do leite, a que eu tinha pavor, pode-se dizer que eu comia de tudo. Minha mãe cozinhava bem, graças a uma coleção encadernada da revista Bom Apetite, de onde tirávamos receitas diferentes do trivial. Assim, mesmo pequena, eu já sabia o significado de empanado, gratinado, molho branco, strogonoff. A dinâmica era sempre a mesma: Enquanto eu lia, minha mãe ia preparando a receita. Diferente da maioria das crianças, tudo de comer me interessava. Na escola, as colegas me cercavam na hora do recreio, curiosas para ver as coisas esquisitas que saiam da minha lancheira. Pão com geleia de ameixa, sanduiche misto com tomate e uma azeitona espetada como nos coquetéis que eu e minha mãe víamos nas revistas. Um sucesso! Nunca gostei muito de doces, com exceção de chocolate, claro. Meu prato preferido na infância era purê de batata com fígado de galinha, tomate, pepino e um ovo cozido. No dia do meu aniversário minha mãe me permitia comer dois ovos, para mim talvez o melhor de todos os presentes.

Como a diferença de idade entre minha irmã e eu é de quase quatro anos, nunca fomos de brincar muito juntas. Aos onze anos ela já era uma mocinha e eu entre sete e oito anos ainda enfrentava os desafios da minha saúde. Diferente de mim ela entrou cedo na escola e entre nós havia uma diferença de quatro anos escolares. Dela herdava brinquedos, roupas e mais tarde, todo o material escolar. Por não ter outros irmãos e por ter demorado a ir para a escola, muito cedo me acostumei a sentir prazer na minha própria companhia. Esse aprendizado me foi muito útil, pois assim é até hoje.

 

domingo, 16 de agosto de 2020

Junina

 



De lá pra cá, quantas festas? Quantas fogueiras pulei? 

Quantos fogos e foguetes? 

Teve muito bolo doce, teve também quentão amargo. São João não é a minha festa preferida. Urbana que sou, durante muito tempo o mês de junho era sinônimo de roupa de caipira para as festas da escola e aquelas mesas cheias de doces dos quais eu não gostava. Hoje até  já gosto, mas agora vasculho as gavetas da memória em busca de um São João maravilhoso, inesquecível. 

Um? 

Dois? 

Sei que vai parecer absurdo, mas o som da sanfona às vezes me traz uma tristeza profunda. Neste ano, socialmente isolada dentro do apartamento, vou correr das lives. Se conseguir acender a fogueira do meu coração, já tô no lucro!

sábado, 15 de agosto de 2020

Coisa de Cinema

                           

 

Se a quarentena nos afastou do convívio dos amigos, dos passeios, da vida cultural e demais interações presenciais, ela nos fez ficar ainda mais conectados. Nunca se postou tanto, nunca se zapeou tanto, nunca se viu tanta live e tanto zoom.

Comigo isso também aconteceu. Não me considero uma pessoa com muitas dificuldades tecnológicas, inclusive cedo tive que me adaptar a esse mundo por força do trabalho. Assim, não foi difícil me acostumar com a nova rotina de reuniões virtuais, que servem principalmente para matarmos as saudades daqueles que lá estão, nos quadradinhos. Com tempo sobrando, pude colocar em prática um desejo antigo: Um grupo para discutir filmes. Não só um, mas dois.

O primeiro grupo, hoje com onze componentes, surgiu a partir de uma conversa com integrantes de um grupo maior do qual eu participava. Joguei a ideia e algumas pessoas se interessaram. Criei o grupo no zap, sem muita pretensão e organizamos uma escala para que cada um tivesse sua hora e vez de indicar um filme, segundo sua preferência.  Passei a organizar as reuniões no zoom e fomos começando.

A princípio apenas comentávamos os filmes. Alguns mais detalhistas e técnicos, já outros comentavam a partir de seus sentimentos e percepções. Até que um dia um filme francês mudou tudo, pois sua bela história encontrou eco nas vivências de uma participante. A arte e a vida se encontraram numa forma bonita e afetuosa e ela generosamente partilhou esse capítulo da sua vida com o grupo. Estava criado o vínculo. Já não era mais um grupo que se atinha a um conteúdo cinematográfico, e, pessoas que nem eram tão próximas, criaram um elo de amizade, carinho, confiança e partilha. Nossos encontros acontecem virtualmente duas vezes por semana, mas a interação agora é diária. Já completamos trinta filmes vistos e discutidos e creio que temos fôlego para ir bem mais além. Inicialmente usávamos a forma gratuita do zoom, que logo se mostrou insuficiente para nossa interação. A solução foi passar a usar a forma paga, que é dividida entre todos. Planejamos também encontros presenciais para quando isso for possível e cada reunião nos traz novas e felizes descobertas.

Animada com o resultado do primeiro grupo, propus a três queridas amigas de longa data que, por sinal são irmãs, que repetíssemos a experiência. Ao nosso quarteto foi incorporada uma nova participante, que talvez por estar em Minas, contribua com uma dose extra de doçura. Nosso encontro acontece nos finais de tarde de domingo. É o nosso chá cinematográfico. Aguardo ansiosa por essas tardes. O curioso é que estamos em cidades diferentes, mas a proximidade é tanta, nem parece...

Participar dos grupos de cinema me trouxe um encantamento ainda maior pela sétima arte. Agora minha percepção é outra. Costumo dizer que nunca vemos um filme duas vezes, pois certamente quando o vimos antes estávamos em outro momento de vida e agora o vemos com outro olhar. Se em algum dia eu fosse elencar os aprendizados da quarentena, certamente meus grupos de cinema mereceriam um Oscar.

 

Nascimento

 

No ano de 1959 grande parte da população brasileira tinha o rádio como forma de lazer. Por meio da música, informações, humor e variedades, o rádio levava a realidade e o sonho aos lares. As radionovelas, que misturavam o real e o imaginário, possibilitaram discussões sobre questões morais, sociais e comportamentais. O rádio unia a cidade e o interior, divulgando novas formas de comportamento, novos produtos, a última moda.

 

Não era diferente no terceiro andar daquele prédio da rua Areal de Baixo, localizada no Largo 2 de Julho, bairro do centro de Salvador. Ali, naquela rua sem saída e com uma simpática vista para o mar da Baía de Todos os Santos, Waldir e Amenaide viviam com Maria da Graça, a filha mais velha, na época com três anos. Em outubro a família cresceria. A torcida geral era por um menino.

 

Seu Waldir era dentista e só voltava para casa no final da tarde. Como toda dona de casa, Amenaide lavava, passava, cozinhava e cuidava da filha. Nos finais de semana, quando contavam com a ajuda de duas vizinhas muito bondosas, amigas até hoje, eles podiam se dar ao luxo de ir ao cinema. Em 1959 foram ver Ben Hur, Quanto mais Quente Melhor, De Repente no Último Verão dentre outros. Mas a maior distração mesmo era o rádio.

 

Foi o rádio quem primeiro falou sobre a Revolução Cubana, antes mesmo que o jornal divulgasse as fotos daqueles jovens barbudos que pareciam tão corajosos. Num outro noticiário Amenaide e o marido souberam que Jânio Quadros seria candidato a presidente. Naquele ano também, pela primeira vez foi noticiada uma greve de trabalhadores. Amenaide não ligou muito. O noticiário da noite interessava mais ao marido e naquela época não era muito claro para ela como esses fatos interferiam na sua vida cotidiana. O que ela gostava mesmo era de ouvir durante o dia as emoções de “ O Direito de Nascer”, marco da história das radionovelas que ficou no ar por mais de três anos. Ouvindo o rádio

ela também acompanhava os sucessos da época, sendo seu preferido um que foi lançado naquele ano de 1959 e se chamava “ A Noite do Meu Bem”.

 

O tempo passou e o mês de outubro chegou.

Pais de uma menina, meus pais aguardavam ansiosos a chegada de um menino. Num tempo em que não havia ultrassonografia, os palpites todos seguiam a linha do senso comum. Barriga pontuda, sinal que viria um menino. A gestante chorava muito...com certeza é menina. Assim, com base nesses prognósticos, meus pais escolheram um nome para o filho que segundo eles acreditavam, estava a caminho: Luiz Armando.

 

Bem, no dia 06 de outubro, terça-feira, às cinco da manhã, após um parto normal e rápido, cheguei.

 

E então?  O que fazer?

Como nasci no Hospital Português, dirigido por religiosas, a freira responsável pelo andar logo perguntou a minha mãe o nome da criança. Sinceríssima como sempre, minha mãe respondeu que haviam escolhido apenas um nome masculino e só agora ela iria pensar num nome para uma menina. A freira, solícita e preocupada comigo, trouxe algumas revistas para quem sabe, dar alguma ideia de nome para a recém-nascida. 

Minha mãe folheou várias revistas. Manchete, Fatos & Fotos e O Cruzeiro. Até que ela encontrou uma reportagem sobre o concurso de Miss Minas Gerais daquele ano. A vencedora se chamava Vânia Beatriz.

 

 Minha mãe gostou de Vânia e se deu por satisfeita. Nisso volta a freira, ansiosa pela definição. Nome anunciado, ela balançou a cabeça, contrariada: "Mas não existe nenhuma santa com este nome! Não existe Santa Vânia! Se ela tiver problemas, para quem a senhora vai rezar! Pobrezinha da criança, não vai ter a proteção de nenhuma santa! Vai ser uma criança desprotegida!

 

Recém parida e sem querer arcar com o ônus de tais presságios, minha mãe pegou as revistas de volta, dessa vez para encontrar um nome que combinasse com Vânia. Inutilmente a freira tentou convencer minha mãe a utilizar Maria como segundo nome.  Afinal, Maria seria o máximo em matéria de proteção. Só que minha irmã era Maria da Graça e minha mãe não quis repetir. Não houve acordo. Depois de várias tentativas, foi escolhido Lúcia, nome de santa e que, gosto de acreditar, fez de mim uma pessoa feliz e protegida.

 

Muitas outras crianças nasceram em 1959. Algumas com nomes de santas, outras não. Não muito longe de Salvador nasceu outra menina, hoje bem famosa, cujo nome de batismo é Maria Odete.  Para vencer na vida ela teve que rebolar muito. Já no Rio de Janeiro nasceu um menino que foi batizado com o nome de Jessé e hoje é conhecido e querido em todo o país.

 

Pois é, posso não ter o rebolado de Gretchen, mas como Zeca Pagodinho, sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu!

 

 


Pernatur, a Origem

 


Minha mãe sempre gostou de museus, galerias, pontos turísticos.

Era nosso costume fazer um desses passeios pelo menos uma vez por semana, geralmente às quartas.

No dia 07.08.2018, comentei isso com amigas do Coral do Oratório de Santo Antônio, no dia em que fomos a Flipelô. Uma delas perguntou então:

- Quer dizer que na próxima quarta-feira você vai fazer um passeio com sua mãe?

- Vou sim.

- Já sabe pra onde?

- Sei, claro. Vamos aos três fortes da Barra que agora funcionam como museus.

- Será que...eu poderia ir junto?

- Claro! São locais públicos!

Na quarta seguinte ao chegar ao Forte de São Diogo, encontro um pequeno grupo me esperando. Uma chamou a vizinha, outra uma amiga...

Fizemos o passeio, lanchamos na Belle's e ao chegar ao Farol da Barra, resolvemos que a partir de então elas iriam comigo a todos os passeios das quartas. Como andávamos muito a pé, batizei o grupo de Pernatur.

A propaganda boca a boca funcionou e logo o grupo chegou a trinta pessoas. Nem todas participam dos passeios, algumas ainda trabalham, etc.

Eu nunca poderia imaginar a felicidade que esta atividade me daria. É com uma alegria sem tamanho que planejo cada passeio, que verifico o local, vejo se há onde lanchar depois.

Minhas tardes de quarta nunca mais foram as mesmas. Com as "Pernatetes" aprendo a ver a vida de uma forma leve, descontraída, alegre. Elas mudaram minha vida!

O Pernatur não vai crescer mais por decisão do grupo e minha também. Criamos um vínculo maravilhoso. Não há cobrança de taxas nem de comportamento. É só alegria mesmo!

Costumo dizer que o Pernatur é um "Lugar de ser feliz."

No dia 7 de agosto completaremos dois anos de existência . No total, entre passeios, eventos e festas, foram sessenta e uma atividades.

O Corona não nos permitiu uma comemoração como queríamos. Não tem nada não. Mesmo cada uma em sua casa, estaremos ligadas pelo lindo laço que é hoje o nosso Pernatur.

A todas nós, um Feliz aniversário !

 

A Outra Vânia

 

Tenho algumas lembranças de infância, mas não creio que consiga organizá-las na ordem em que de fato aconteceram. Uma delas é bem marcante, talvez pelo fato de ter sido a primeira vez em que consegui me sair bem de um problema criado por mim.

Creio que na época eu tinha em torno de cinco anos e morava num pequeno apartamento com meu pai, minha mãe e minha irmã. O prédio pertencia a uma família de espanhóis que mantinham também um bar e pastelaria ao lado do prédio. Periodicamente eles defumavam presunto e lembro até hoje do cheiro delicioso.  Nos idos dos anos 60, a maioria dos prédios mesmo o mais requintado, não possuía playground ou salão de festas. O jeito era brincar no apartamento mesmo.

Desde muito pequena me encantei com os cadernos de desenho e os lápis de cor. Rapidamente os preenchia de imagens. Aí minha mãe me passava os papeis de embrulho que eu rabiscava com a mesma rapidez. Sem que ela percebesse, comecei a exercitar minha arte sobre outras superfícies. Os pés das cadeiras, as costas do sofá, o fundo da máquina de costura e qualquer outro espaço se transformava em tela. Quando minha mãe percebeu, o estrago já estava feito, e nem as paredes escaparam.

Meu pai percebeu que seria uma excelente oportunidade para pintar o apartamento, minha mãe aprovou e ambos tiveram creio que uma longa conversa comigo. A princípio carinhosa, mas ao final deixando bem claro que se alguma parede fosse convertida em painel, eu não escaparia de uma surra. Acho que esse fato aconteceu num sábado, pois meu pai estava em casa e era cedo, na parte da tarde. Gostei de sentir o cheiro da tinta, gostei de ver as paredes tão limpas, como grandes folhas de papel ofício...

Minha mãe me deu banho, me vestiu e perfumou com Seiva de alfazema. Eu adorava o vestido azul, com gola em xadrez combinando com o grande bolso na frente. Desse bolso saiam flores bordadas. Minha mãe me deixou na sala e foi tomar seu banho.

Minha próxima lembrança é de ver meus pais na minha frente, gritando, desesperados ante a visão das mil garatujas que cobriam a parede antes impecavelmente branca. Coisas como “Eu avisei! ”  “Como você pode fazer isso! ”  “Vai cair no chinelo! ” De onde veio a ideia, não sei dizer. Permaneci impassível durante todo o tempo. Finalmente, olhei séria para minha e afirmei:

- Não fui eu não, mamãe.

- AH, não foi... então diga quem foi!

Segurando minha mãe pela mão, me dirijo para o outro lado da sala, em frente ao espelho, onde vemos agora refletida a imagem de um adulto e de uma criança, que aponta, triunfante:

- Foi ela! A outra Vânia!

O espelho reflete agora a imagem de uma mãe incrédula e de uma criança firme e segura. Meu pai também permanece imóvel. Fui mandada para o quarto ilesa, e de lá não conseguia entender o que eles sussurravam. Julguei ter ouvido risos. No outro dia a parede recebeu outra mão de tinta que “ambas” as Vânias respeitaram. Guardada na memória durante muito tempo, essa lembrança voltou quando me foi solicitado que trouxesse uma memória de uma situação em que consegui me safar sozinha. Essa foi a primeira de várias.

 

No espelho

sábado, 25 de julho de 2020

Cozinhando na quarentena I




Nos finais de semana que minha mãe vem para minha casa, sempre invento preparar uma receita com ela. Hoje foi o bolo de abóbora .
Confesso que fico tensa. Os bolos são entidades que possuem vida própria e nunca se sabe o que vai acontecer, ou melhor, como ficarão ao final. Os cinquenta minutos de forno são um teste para minha ansiedade. Lembro da minha infância, quando não se podia abrir o forno, nem a janela, já que a temperamental mistura poderia se revoltar e "solar" se fosse exposta ao vento. Acompanhava , em silêncio, minha mãe fazer o "teste do palito" várias vezes, até que ele retornasse limpinho do interior do bolo.
Tudo isso eu lembrei hoje até o momento em que o bolo de abóbora enfim foi dado como assado por minha mãe.
Nem esperei esfriar.
Suspense...
Eu merecia hoje que o bolo ficasse fofinho e gostoso. Ficou!
Daqui a quinze dias, refeita da aventura, volto a me aventurar.

Origens




A cada dia que passa, me encantam mais os pequenos gestos, pois são eles que nos trazem as grandes alegrias.
Um dia, curiosa sobre a origem do nome da minha família, sai pesquisando.
 Descobri assim que o Rebelo é um tipo de barco português que transportava os tonéis de Vinho do Porto ao longo do Rio Tejo.
Achei linda a história e claro que dividi com os amigos.
Então hoje receber de surpresa este Barquinho Rebelo, me possibilita muito mais que ter em casa mais um objeto de referência afetiva.
Possibilita  a constatação que somos muito mais que nossa origem.
Somos sim o aprendizado constante e o entrelaçamento com aqueles que escolhemos para fazer parte da nossa vida.
Aqueles que chamamos de amigos.
Minha amiga,
Obrigada de coração por sua amizade e carinho.

Aprendizado



Final de semana chegando.
Sexta é dia de comprar frutas e verduras na van que estaciona quase na porta de minha casa.
Tudo fresco, tudo gostoso. O melhor aipim do mundo, aquele que se dissolve na boca.  Disputadíssimo, é o primeiro a  acabar.
Na última terça fiquei enrolando e só desci após as 7 da manhã.
Ao sair do prédio vislumbrei os dois últimos pacotes. Apressei o passo, olhos fixos no alvo. Eis que um carro estaciona ao lado da van e do banco do carona a mascarada exige:
- Quero os dois pacotes de aipim!
A quarentena me ensina, a cada dia, a inutilidade de adiar os pequenos prazeres.  Assim...
- Por favor, deixe um pra mim! Só desci pra isso!
Silêncio. Dentro do carro, confabulam. Só pelo ato de coragem eu já estava feliz.
A vendedora, já um pouco impaciente, pois os clientes começam a aumentar:
- A senhora vai querer os dois?
Silêncio.
- Vai?
- Eu ia, mas como ela também quer...
Agradeci do jeito escandaloso que adoto quando estou muito feliz.
Aipim garantido, parto para o manjericão enorme e cheiroso que transforma meus tomates numa salada de sonho.
Quarentena, tempo de aprendizado.

Na Parede da Memória



Penso por imagens. Algumas têm movimento, como os filmes.
Há cenas tão nítidas que não parecem ter ocorrido há mais de cinquenta anos. Outras já lembram quadros pintados com aquarela  diluída em muita água. Mas sempre há alguma imagem.

Algumas cenas da infância também trazem cheiros, como o cheiro do leite tirado do peito da vaca na fazenda. Odiava o leite, o cheiro do leite, o barulho que o leite fazia ao sair da teta da vaca e bater no balde de metal formando uma espuminha asquerosa. A fazenda toda cheirava a alguma coisa. O fogão de lenha e tudo que vinha dali tinha um cheiro gostoso, a espiral que matava os mosquitos não, a bosta dos bois e cavalos muito menos.

Outro cheiro forte da infância era o do xarope de agrião que Dona Vivi, a lavadeira, preparava em casa para mim. Posso vê-la, ancas enormes, trouxa de roupa na cabeça, subindo com dificuldade os dois lances de escada do prédio, trazendo entre as roupas o xarope, cujo cheiro a antecedia. Esse era um cheiro que me enchia de pavor. Até hoje odeio agrião.

Mas há muitos lembranças de cheiros felizes! O talco que minha mãe me passava e que eu lambia, a espuma de barbear de meu pai, o cheiro de álcool das provas, a cera Parquetina do piso, a graxa que eu passava nos meus sapatos Vulcabras aos domingos e que me lembrava que no dia seguinte era dia de aula. Tantos cheiros, tantos.

Sempre acreditei que memória era  igual para todo mundo, até que comecei a organizar encontros de ex-colegas de ginásio e primário.
Aí descobri que minha memória era diferente, pois  via as cenas como se tivessem acontecido recentemente, ao contrário da maioria das colegas.

Lições inteiras de Francês, todos os sobrenomes de todas as trinta e cinco colegas, nomes de todos os professores e suas disciplinas, trechos de lições que decorei, fatos que ninguém mais lembrava. Virei referência para consultas sobre nossos tempos de escola.

Não sei se gosto de divagar por ter boa memória, mas gosto muito de lembrar de fatos passados. Na minha tela mental as cenas vão se seguindo, às vezes até  arrisco mudar a sua ordem. Ser platéia do que vivi já me ajudou a entender hoje fatos  que na época não ficaram tão claros. Consigo ser mais compreensiva comigo, e muitas vezes, dou a sofrimentos passados uma nova interpretação.

Almoços de Domingo

  Feijão, arroz, galinha assada. Feijão, arroz, carne de porco assada. Aos domingos era ou um, ou outro. Sempre. Mesmo sendo uma família...