Tenho algumas lembranças de
infância, mas não creio que consiga organizá-las na ordem em que de fato
aconteceram. Uma delas é bem marcante, talvez pelo fato de ter sido a primeira
vez em que consegui me sair bem de um problema criado por mim.
Creio que na época eu tinha em
torno de cinco anos e morava num pequeno apartamento com meu pai, minha mãe e
minha irmã. O prédio pertencia a uma família de espanhóis que mantinham também
um bar e pastelaria ao lado do prédio. Periodicamente eles defumavam presunto e
lembro até hoje do cheiro delicioso. Nos
idos dos anos 60, a maioria dos prédios mesmo o mais requintado, não possuía
playground ou salão de festas. O jeito era brincar no apartamento mesmo.
Desde muito pequena me encantei
com os cadernos de desenho e os lápis de cor. Rapidamente os preenchia de
imagens. Aí minha mãe me passava os papeis de embrulho que eu rabiscava com a
mesma rapidez. Sem que ela percebesse, comecei a exercitar minha arte sobre
outras superfícies. Os pés das cadeiras, as costas do sofá, o fundo da máquina
de costura e qualquer outro espaço se transformava em tela. Quando minha mãe
percebeu, o estrago já estava feito, e nem as paredes escaparam.
Meu pai percebeu que seria uma
excelente oportunidade para pintar o apartamento, minha mãe aprovou e ambos
tiveram creio que uma longa conversa comigo. A princípio carinhosa, mas ao
final deixando bem claro que se alguma parede fosse convertida em painel, eu
não escaparia de uma surra. Acho que esse fato aconteceu num sábado, pois meu
pai estava em casa e era cedo, na parte da tarde. Gostei de sentir o cheiro da
tinta, gostei de ver as paredes tão limpas, como grandes folhas de papel
ofício...
Minha mãe me deu banho, me vestiu
e perfumou com Seiva de alfazema. Eu adorava o vestido azul, com gola em xadrez
combinando com o grande bolso na frente. Desse bolso saiam flores bordadas.
Minha mãe me deixou na sala e foi tomar seu banho.
Minha próxima lembrança é de ver
meus pais na minha frente, gritando, desesperados ante a visão das mil garatujas
que cobriam a parede antes impecavelmente branca. Coisas como “Eu avisei! ” “Como você pode fazer isso! ” “Vai cair no chinelo! ” De onde veio a ideia,
não sei dizer. Permaneci impassível durante todo o tempo. Finalmente, olhei
séria para minha e afirmei:
- Não fui eu não, mamãe.
- AH, não foi... então diga quem
foi!
Segurando minha mãe pela mão, me
dirijo para o outro lado da sala, em frente ao espelho, onde vemos agora
refletida a imagem de um adulto e de uma criança, que aponta, triunfante:
- Foi ela! A outra Vânia!
O espelho reflete agora a imagem
de uma mãe incrédula e de uma criança firme e segura. Meu pai também permanece
imóvel. Fui mandada para o quarto ilesa, e de lá não conseguia entender o que
eles sussurravam. Julguei ter ouvido risos. No outro dia a parede recebeu outra
mão de tinta que “ambas” as Vânias respeitaram. Guardada na memória durante
muito tempo, essa lembrança voltou quando me foi solicitado que trouxesse uma
memória de uma situação em que consegui me safar sozinha. Essa foi a primeira
de várias.
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